Controvérsia sobre a participação de psicólogos em Comissões Técnicas de Classificação
A participação de psicólogos em Comissões Técnicas de Classificação (CTC), previstas no sistema penal brasileiro, tem sido motivo de controvérsia entre o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e órgãos da Justiça. A discussão envolve tanto a cientificidade da Psicologia, quanto o risco do cientificismo e os limites éticos da profissão.
1. Marco legal e atribuições da CTC
O artigo 8º da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984) estabelece que cada estabelecimento penal contará com uma Comissão Técnica de Classificação, responsável por elaborar o programa individualizador da pena, incluindo diagnósticos e recomendações sobre o detento.
A Lei nº 10.792/2003 reforçou o papel dessas comissões, incluindo expressamente a avaliação psicológica e psiquiátrica para subsidiar decisões sobre progressão de regime e outros benefícios. Assim, criou-se a expectativa de que psicólogos pudessem elaborar prognósticos de periculosidade ou estimativas sobre reincidência criminal, com consequências diretas na liberdade do condenado.
2. Resolução CFP nº 12/2011 e seus desdobramentos
Em 2011, o CFP editou a Resolução nº 12/2011, restringindo a elaboração de laudos ou pareceres psicológicos que afirmassem “periculosidade” ou prognósticos deterministas sobre a conduta futura de detentos. O fundamento era a ausência de métodos psicológicos cientificamente válidos para garantir previsões com tal grau de certeza, além dos riscos éticos envolvidos.
Contudo, em 2015, uma decisão judicial decorrente de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público de Porto Alegre obrigou o CFP e os Conselhos Regionais de Psicologia (CRPs) a suspenderem a aplicação da Resolução nº 12/2011, restabelecendo a exigência da Justiça pela atuação dos psicólogos em CTCs, ainda que sob críticas da categoria.
3. Cientificidade da Psicologia e risco do “cientificismo”
O CFP tem reiterado que a Psicologia, como ciência, dispõe de técnicas e instrumentos para analisar processos cognitivos, afetivos e sociais, avaliar contextos e compreender o funcionamento psicológico de indivíduos. O psicólogo tem a capacidade de fundamentar e explicar comportamentos, interpretar ações à luz do funcionamento cerebral e situar responsabilidades no contexto social.
Entretanto, essa competência não autoriza a formulação de prognósticos deterministas de periculosidade. A conduta humana é dinâmica e influenciada por múltiplos fatores biológicos, psíquicos e sociais, impossíveis de serem reduzidos a índices fixos ou previsões matemáticas. Quando o sistema de Justiça exige do psicólogo a emissão de pareceres que garantam se o indivíduo voltará ou não a delinquir, projeta sobre a Psicologia um papel de cientificismo — a expectativa de uma objetividade absoluta que extrapola os limites do conhecimento científico.
4. Limites éticos e o Código de Ética
O Código de Ética Profissional do Psicólogo veda a promessa de resultados que não possam ser assegurados cientificamente e exige respeito à dignidade, liberdade e integridade das pessoas atendidas. A elaboração de laudos que afirmem periculosidade futura pode resultar em privações indevidas de liberdade, estigmatização do sujeito e violação de direitos humanos.
Assim, o CFP preocupa-se em proteger não apenas a credibilidade científica da Psicologia, mas também os direitos fundamentais dos detentos, impedindo que o saber psicológico seja instrumentalizado para legitimar práticas de exclusão social e punição excessiva.
5. Conclusão
A controvérsia entre o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e os órgãos da Justiça quanto à participação de psicólogos em Comissões Técnicas de Classificação (CTC) para elaboração de prognósticos sobre “periculosidade” dos detentos revela tensões profundas entre as expectativas do sistema jurídico e os fundamentos científicos e éticos da Psicologia.
Em primeiro lugar, a cientificidade da Psicologia impõe limites claros. O CFP sustenta que a disciplina, embora disponha de métodos rigorosos de avaliação e acompanhamento clínico, não possui instrumentos cientificamente válidos e confiáveis para prever com exatidão o futuro comportamento de um indivíduo em contextos complexos, como a reincidência criminal ou a manutenção da “periculosidade”. Essa limitação não é falha da Psicologia, mas característica de um campo que lida com subjetividade, variáveis contextuais e processos dinâmicos de desenvolvimento humano. Ao exigir prognósticos deterministas, a Justiça pressiona o psicólogo a ultrapassar as fronteiras da cientificidade.
Por outro lado, é inegável que o psicólogo tem a capacidade de fundamentar e embasar os comportamentos humanos: pode analisar processos cognitivos e emocionais, compreender o funcionamento cerebral e interpretar como esses fatores influenciam a tomada de decisões. Além disso, o psicólogo é capaz de avaliar o contexto em que o indivíduo está inserido e, a partir daí, refletir sobre o grau de responsabilidade que este tem em suas ações. Esse olhar científico e técnico é um diferencial da Psicologia e pode, sim, contribuir para o sistema de Justiça — desde que dentro dos limites do que a ciência psicológica pode sustentar com validade.
É justamente nesse ponto que emerge o risco do “cientificismo” — isto é, a expectativa social de que o psicólogo possa oferecer respostas absolutas e neutras, como se fosse possível reduzir a conduta humana a índices objetivos ou fórmulas matemáticas. Essa visão distorce a função do psicólogo, transformando-o em instrumento de legitimação de decisões judiciais já orientadas, em vez de em profissional que traz complexidade e criticidade à análise dos casos. O CFP alerta que essa demanda de “certezas” absolutas é menos científica e mais ideológica, pois atribui à Psicologia um papel que ela não pode nem deve desempenhar.
Por fim, os limites éticos definidos pelo Código de Ética Profissional do Psicólogo reforçam essa preocupação. O psicólogo não deve prometer resultados que não pode garantir, nem utilizar seus conhecimentos para legitimar práticas que violem direitos humanos ou comprometam a dignidade da pessoa atendida. Elaborar prognósticos de “periculosidade” pode gerar privações indevidas de liberdade, perpetuar estigmas e justificar punições desproporcionais — contrariando os princípios éticos de respeito, promoção de saúde e defesa dos direitos fundamentais.
Assim, as preocupações do CFP se justificam: trata-se de reconhecer a relevância do olhar psicológico para compreender comportamentos, contextos e responsabilidades, mas também de defender a Psicologia como ciência e profissão ética, evitando que seja instrumentalizada pelo “cientificismo” e pelas pressões de um sistema jurídico que demanda certezas impossíveis.
Enquanto a Justiça busca no psicólogo uma “prova técnica” para decidir sobre progressão de pena, o CFP defende os limites da cientificidade e da ética profissional. O psicólogo pode — e deve — contribuir analisando comportamentos, contextos e responsabilidades, mas não pode ser compelido a emitir prognósticos deterministas de periculosidade, prática que ultrapassa o escopo científico da Psicologia e fere seus princípios éticos.
Portanto, as preocupações do CFP são justificadas pela necessidade de conciliar o papel social da Psicologia com seus fundamentos científicos e com os limites éticos que orientam a profissão, evitando a instrumentalização do saber psicológico para fins judiciais que extrapolam suas possibilidades reais.
Lílian Schreiner-Módolo
Sou psicóloga em formação, pesquisadora, empresária e designer de formação inicial (UFAM), Mestre e Doutora em Administração (USP).
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